
A desconsideração da personalidade Jurídica à luz do novo Código Processual Civil
A pessoa jurídica é um ente dotado de personalidade jurídica e patrimônio próprio, inconfundíveis com a personalidade e o patrimônio de seus sócios, administradores ou gestores. No entanto, o instituto da pessoa jurídica representa, para o Direito, o que os doutrinadores denominam de ‘ficção jurídica’, o que significa dizer que ela não representa um ente ou individuo com desígnios próprios e capacidade de agir no “mundo real”, como a pessoa natural o faz, mas sim um instrumento abstrato, do direito e para o direito, que visa possibilitar o exercício das atividades – em regra, comerciais – para os quais a pessoa jurídica fora criada.
Contudo, em que pese o intento do legislador no sentido de garantir proteção e máxima distinção entre o patrimônio da pessoa jurídica e o de seus sócios e administradores, fez-se necessário, também, que o Direito agisse no sentido de prever a desconsideração da personalidade jurídica; ou seja, o fenômeno em que, preenchidos os requisitos legais para tanto, possibilite que o patrimônio dos sócios seja atingido para garantir o adimplemento de obrigações contraídas pela pessoa jurídica por eles administradas.
Isso porque a experiência consolidada pela praxe do ordenamento jurídico apurou que a distinção legal atribuída pelo Direito à pessoa jurídica em face da pessoa natural pode ser desvirtuada de seu objetivo natural, transformando-se em ferramenta manejada por sócios e gestores que, imbuídos de má-fé ou de simples falta de dote para os atos do empreendedorismo e da gestão empresarial, utilizam da proteção legal atribuída à pessoa jurídica para esquivar-se de obrigações contraídas sob seus comandos, ou mesmo para a prática de atos ilícitos.
Daí a necessidade de instituição do fenômeno da Desconsideração da Personalidade Jurídica, pois da feita em que apurado o que a legislação civil prevê como confusão patrimonial e desvio de finalidade empresarial, os sócios passam a ser chamados para responder e adimplir as dívidas contraídas inclusive com seus patrimônios pessoais, se preciso for.
Por outro lado, a ausência de dispositivo legal estabelecendo requisitos contundentes e objetivos à aplicação da Desconsideração da Personalidade jurídica deu origem a uma excessiva demanda de pedidos de inserção do patrimônio dos sócios de empresas devedoras ao polo passivo das demandas, sem, contudo, haver qualquer disposição garantindo que o pedido fosse submetido ao crivo da ampla defesa e contraditório, ficando unicamente a critério do magistrado, valendo-se dos requisitos subjetivos até então disponíveis, o deferimento ou não dos efeitos da desconstituição da personalidade jurídica.
Assim, com o advento do Novo Código Processual Civil, vigendo a partir de 2015, o legislador, no intuito de dirimir o impasse, estabeleceu como critério necessário à análise do pedido de Desconsideração da Personalidade Jurídica o processamento deste por meio de incidente processual.
Referida medida visa submeter o pedido ao rigor dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, evitando-se assim que o patrimônio dos sócios das empresas devedoras seja submetido às medidas coercitivas das demandas executórias sem ao menos ouvi-los nos autos.
Nesse sentido, para fins de evitar decisões que coloquem em risco o patrimônio do devedor sem ao menos possibilitar sua defesa, o novo Código de Processo Civil traz disposição expressa acerca da necessidade de que essas decisões sejam submetidas ao crivo do contraditório, a começar pelo artigo 9º do citado diploma processual, que dispõe no sentido de que “Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que esta seja previamente ouvida”.
Não obstante, mais à frente, o atual diploma processual dispõe de capítulo específico delineando o procedimento a ser observado a partir da instituição do pedido de Desconsideração da Personalidade Jurídica na modalidade de incidente processual, ao consignar, a partir do artigo 133, que “O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo”.
Não obstante, fez o legislador questão de consignar condição expressa acerca da necessidade de que o devedor seja intimado para se defender quando do pedido de Desconstituição da Personalidade Jurídica feito pelo credor, na medida em que dispõe em seu artigo 135 que “Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias”.
Da leitura dos dispositivos que trouxeram inovações de larga relevância acerca do tratamento atribuído à desconsideração da personalidade jurídica dos devedores, não restam dúvidas no sentido de que o legislador buscou alinhar esse tratamento aos princípios e garantias constitucionais que servem de supedâneo ao Direito Processual Civil como um todo, garantindo assim o direito do devedor de ser ouvido antes que seu patrimônio seja submetido aos efeitos das medidas executórias, em respeito ao princípio do devido processo legal.
De outra feita, é certo que, em alguns casos, o diploma legal supracitado dispensa expressamente a feitura do incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica, atribuindo ao magistrado autonomia para indeferi-lo de plano, caso se observe, in casu, a manifesta ausência dos requisitos que autorizem a concessão da medida, desde que o indeferimento se proceda via decisão devidamente fundamentada.
Com efeito, não restam dúvidas no sentido de que o dispositivo processual reformado objetivou alinhar o processo com a máxima observância aos ditames constitucionais, o que garante aos devedores e sócios das pessoas jurídicas devedoras garantias que outrora não se viam expressamente entabuladas na legislação processual.
Por outro lado, o receio que se aventa após a vigência da nova sistemática processual diz respeito à efetiva garantia da celeridade processual, princípio que também representou uma diretriz de extrema relevância quando da elaboração do atual Código Processual Civil, pois, da feita em que o pleito de Desconsideração da Personalidade Jurídica ganha novo tratamento e disposições específicas que garantem uma aplicação mais prudente e criteriosa, cogita-se por consequência a iminente perda da celeridade no acolhimento ou indeferimento do pleito.
Por se tratar de dispositivo legal com recente início de vigência, eventual diagnóstico acerca dos pontos favoráveis e desfavoráveis da nova sistemática mostra-se demasiadamente precipitado. Nesse sentido, tal como a maioria das inovações, é apenas no transcorrer da prática jurídica, à luz das novas disposições, que poderemos aferir com precisão os efeitos dos procedimentos recentemente estabelecidos pela legislação processual.
Autor: Luan Agenor Ernica
Advogado Cível Empresarial
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